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Sem respeito às instituições multilaterais, o mundo torna-se refém da lei do mais forte, mergulhando em instabilidade crônica.

Em 24 de outubro de 1945, a Organização das Nações Unidas surgia dos escombros da Segunda Guerra Mundial como portadora da esperança de uma nova ordem internacional baseada na cooperação, na solidariedade entre os povos e na busca da paz. Porém, ao completar 80 anos nesta segunda quinzena do mês, a instituição está enfraquecida em sua capacidade de influência e promoção do entendimento entre os países.

Daí a importância do tema referente ao emblemático aniversário: “Construindo nosso futuro juntos”. É um convite à renovação do multilateralismo e à reafirmação da centralidade da ONU. Esse propósito conecta-se à Agenda 2030 e aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), um apelo à ação para erradicar a pobreza, proteger o meio ambiente e o clima e assegurar que as pessoas, em todos os lugares, possam desfrutar de harmonia e prosperidade.

No entanto, o crescente desrespeito às decisões do Conselho de Segurança, às instâncias da mediação e às recomendações da ONU evidencia o enfraquecimento da entidade e das demais organizações multilaterais. Sem acatamento da arbitragem neutra, disputas territoriais multiplicam-se, conflitos bélicos prolongam-se e a competição comercial cria cada vez mais tensões. O resultado é um cenário global em que a economia, em vez de servir como vetor de progresso compartilhado, torna-se objeto de embate e baixo crescimento, corroendo a confiança dos mercados e desestimulando investimentos.

Reforçar a centralidade das Nações Unidas também significa restaurar o respeito às deliberações e recomendações de suas agências especializadas. A Unesco, ao zelar pela cultura e a educação; o Unicef, ao defender as crianças; a OIT, ao parametrizar as relações trabalhistas; o Pnuma, ao enfrentar a crise ambiental, e a ONU-Habitat, ao pensar as cidades do futuro, são vozes que precisam ser ouvidas. Do mesmo modo, é imprescindível revigorar a Organização Mundial do Comércio (OMC), que não faz parte da estrutura da ONU, mas também vem perdendo força.

Enfatizo aqui dois exemplos práticos e reais das consequências danosas do enfraquecimento do multilateralismo: 1) Quando países descumprem as recomendações essenciais da OIT referentes ao trabalho digno, instaura-se grave desigualdade concorrencial em relação àqueles nos quais as condições atendem aos parâmetros da entidade, pois precarização laboral não pode ser transformada em diferencial competitivo. 2) Ao se desprezarem as regras mínimas da OMC, tarifas de importação exageradas e sem qualquer justificativa técnico-econômica passam a ser impostas, desequilibrando o comércio internacional.   

Esses dois pontos mostram que o multilateralismo não é mera formalidade diplomática, mas sim uma necessidade vital para a humanidade enfrentar os desafios que transcendem fronteiras, como a desigualdade social, a insegurança alimentar, as crises humanitárias, as epidemias, a falta de saneamento básico e moradia, as mudanças climáticas e as guerras que devastam populações e multiplicam o contingente de refugiados.

A indústria tem imensa capacidade de contribuir para o êxito no enfrentamento desses problemas, mas também é afetada pelo agravamento do cenário geopolítico. Nos 80 anos da existência da ONU e do fim da Segunda Guerra Mundial, criando condições para suprir grande parte das demandas da civilização, o setor passou por uma transformação fulminante, marcada pela automação, expansão da produção em larga escala e integração global das cadeias de valor.

O período pós-guerra consolidou a manufatura como motor econômico, com a difusão de linhas de montagem mais eficientes, modernização da siderurgia, petroquímica e do setor automotivo, além do advento da eletrônica. O setor também foi o grande indutor da tecnologia, na qual ocorreram avanços ainda mais intensos. A informática, o microchip e a internet inauguraram a era digital.

A inteligência artificial, a biotecnologia e as energias renováveis são as conquistas mais recentes dessa evolução, criando condições para uma economia cada vez mais sustentável e conectada. Hoje, a convergência entre indústria e tecnologia redefine modelos de negócios, gera novas áreas de atividade e transforma a vida das pessoas, num processo de inovação contínua.

Tracei esse paralelo entre a trajetória da ONU e da indústria nas oito décadas após a Segunda Guerra para evidenciar a necessidade de a comunidade global usar com sabedoria tudo o que criamos para o bem-estar e o desenvolvimento da humanidade. Isso implica o resgate dos fundamentos inspiradores das Nações Unidas. Afinal, sem respeito às instituições multilaterais, o mundo torna-se refém da lei do mais forte, mergulhando em instabilidade crônica.


 
*Rafael Cervone é o presidente do Centro das Indústrias do Estado de São Paulo (Ciesp) e primeiro vice-presidente da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp).